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27 out

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra – Mia Couto

Posted in: Impressões de Leitura

Por fim, alguém me dizia como falecera o avô. Acontecera do seguinte modo: a familia se reunira para posar para uma fotografia. Alinharam todos no quintal, o avô era o único sentado, bem no meio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuis uns e outros pelos devidos lugares, corrigia sorrisos, arrumava alturas e idades. Dispararam-se as máquinas, deflagraram os flashes. Depois, todos risonhos, se recompuseram e se dispersaram. Todos, menos o velho Mariano. Ele ficara, sentado, sorrindo. Chamaram-no. Nada. Ele permanecia como que congelado, o mesmo sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. O seu coração se suspendera em definitivo retrato.

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terraEm agosto comecei a ler esse livro, mas não era o momento correto e simplesmente parei. Para ler Mia Couto, a pessoa precisa estar de espírito livre a fim de absorver todas as suas nuances. Como um arco-íris, se não verdadeiramente olharmos, se não prestarmos atenção, não conseguiremos observar todas as cores, a riqueza de tons que ele nos apresenta. E, portanto, abandonei o livro. Esse mês –  outubro – olhei pra ele e resolvi me dar uma segunda chance. Só posso dizer que dessa vez eu fui absorvida pelo livro de maneira tal que a dificuldade de conversar sobre ele me vem no encalço.

Esse é o terceiro livro que leio do autor. O primeiro foi A confissão da leoa e o segundo foi Terra sonâmbula. Mas antes mesmo de ler seus livros, eu já nutria por Mia Couto uma admiração grande, diante entrevistas e textos pequenos que li pelas andanças cibernéticas. A sensibilidade que ele apresenta em seu texto, juntamente com temas comuns como identidade, ancestralidade, a mulher, a força do ser humano, me chamaram desde sempre a atenção e antes mesmo de ler eu já sabia que iria gostar. E não foi diferente. A beleza com que alguns escritores juntam palavras para denotar significações impares no contexto do mundo, me impressiona. Mia Couto consegue fazer isso de maneira simples e tranquila.

Nesse livro específico, Marianinho volta à cidade onde nasceu, luar-do-chão, por ocasião do falecimento do avô, seu tio abstêncio – que nunca sai de casa – vai buscá-lo na outra cidade que se encontra. No decorrer da história ele se depara com cartas que surgem de maneira bastante incomum. Ele reencontra familiares, colegas, desavenças, uma cultura que já não faziam parte dele e que aos poucos vão retornando a ele como identidade, uma redescoberta dele e das pessoas que o rodeiam. Um livro cheio de histórias, cheio de lendas, cheio de paixão. Os costumes de uma terra que aos poucos vão se fincando enquanto parte de uma família, de um meio. Uma história repleta de espiritualidade trabalha de maneira delicada em torno de uma Luar-do-Chão sem perspectiva, abandonada.

Dentro da história conseguimos perceber de maneira clara uma mistura de situações onde o coletivo interfere no individuo e vice e versa. Os personagens tem suas histórias entrelaçadas tanto entre si, quanto com a terra – a ilha. Miserinha, Mariavilhosa, Admirança, Dulcineusa, mulheres sempre fortes com histórias tão profundas as quais se confundem com a história do lugar, com aquilo que acontece ao seu redor. Apesar de não ter um direcionamento político, o livro faz comentários muito pertinentes tanto no papel de Fulano Malta, ex-soldado desiludido com o rumo que as coisas tomaram, quanto no papel de Ultimio, personagem bastante controverso, na minha humilde opinião.

Para quem se interessa por começos interessantes, “A morte é como um umbigo:  quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência.” O mundo espiritual e o mundo dos vivos se entrelaçam o tempo todo, nos deixando duvidas as vezes o que é lá e o que é cá. Pensei bastante com relação às passagens que colocaria aqui e um trecho de uma conversa de Marianinho e Dona Dulcineusa me pareceu poético para figurar entre as preferidas do livro. Ela pede permissão para chamar Marianinho de senhor padre.

– Quando dissermos as boas-noites lá em casa, posso tratá-lo de “senhor padre”?

É que ela tinha uma confissão para ser ajoelhada em troca de clemência. Eu seria o primeiro a escutar esse abrir de peito. Afinal, nem esperou que chegassemos a casa por que logo ali, de adiantado, ela desabafou:

– Fui eu quem matei o seu avô!

Sorrio, mas sem vontade. O sorriso é minha resposta por não saber como reagir. Dulcineusa não dá tempo, prosseguindo:

– Eu sempre o quis matar, senhor padre. Sempre. Esse homem fez-me tanto mal, com essas amantes dele. E agora, sabe o que aconteceu?

– Diga, diga sem medo.

– Agora, que está morto, só quero que fique vivo outra vez.

Em um outro momento [Mas praticamente no mesmo instante ;)], Marianinho pensa um pouco como a ilha se evade dele. Escapa de suas mãos como grãos de areia a se dispersar no vento.

 As ruas estão cheias de crianças que voltam da escola. Algumas me olham intensamente. Reconhecem em mim um estranho. E é o que sinto. Como se a ilha escapasse de mim, canoa desamarrada na corrente do rio.

Por fim, para literalmente por fim, esse texto me trouxe memórias que não entendo motivo me remeteram a uma pessoa querida que perdi já algum tempo. Talvez esse o motivo da dificuldade em um primeiro momento, vai saber. De uma maneira geral, livro muito bom que merece 5 estrelinhas.

 

Dados Técnicos:

Título: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2003
Páginas: 262

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